Rio de Janeiro, 1978. Pelos campinhos da baixada lá ia o menino travesso, moleque suado com a camisa rasgada e o short do lado avesso. A bola comprada com as vendas de sacolé estava sempre debaixo do braço, só pra ver se os meninos da pelada o deixavam jogar e quem sabe marcar um golaço. Contava seus gols pelos campos de terra batida. 22 até então contra 215 do Digão. Era goleada. Mas ele não ligava. Sabia que o pior estava em casa, a reclamação de um pai radical que achava que futebol era pra marginal.
Pai mineiro, que foi para o Rio de Janeiro na tentativa de enricar. É, só enricou seis filhos cariocas e bateu com a cara na porta de tudo quanto é lugar. Pai que amava seus filhos como tanta força que, por medo, lhes privava da liberdade. Que achava que diversão e esporte eram riscos e futilidades. Mas sua mãe, por sorte, assim não pensava. Esperava o marido sair, colocava um ki-suco na bolsa e os seis filhos num ônibus rumo à qualquer praia.
Já o menino sonhador, que não era culpado de nada, sentiu tudo na pele. A privação da rua, das amizades e principalmente da tal pelada. Em casa ele sempre escondia a bola. Mas toda vez que nas mãos a pegava, como num conto de estória, a sua vida se encantava. Ah! Bola amada! Mundo imaginário! Retirando o pobre cenário onde até a comida lhe faltava, a vontade pela boca saltava e mesmo num pequenino corpo o menino num grito louco dizia que queria ser um rei. O rei do futebol. Sonhos que se tornavam reais à medida que o tempo passava. Pouco talento, diga-se de passagem. Mas a ânsia da sua vontade o fazia vibrar de felicidade a cada golzinho marcado. Gol de peito, de barriga ou sentado, não importava a qualidade, apenas o número de sonhos que eles proporcionavam. Mas este não era o seu destino...
E foi num primeiro sinal que algo muito anormal veio a acontecer. Um amiguinho de jogo morreu no meio de um fogo num lote abandonado e ninguém soube o porquê.
Uma semana depois outro colega caiu num bueiro aberto e como se fosse inseto, simplesmente desapareceu.
Outro aviso do destino aconteceu num jogo emocionante, valia um troféu usado e dois litros de refrigerante. Ele, que era esforçado, correu mais do que os outros e de tanto que ficou cansado caiu no meio do campo. Debaixo de um sol escaldante, ficou ali parado, com os olhos semi-fechados e um sorriso meio maroto. Nada grave ele teve, a não ser uma estranha visão: uma enorme bola falante que dizia para aquele menino que futebol não era seu destino. Seria até motivo de graça se ele não tivesse ficado um mês inteiro em casa, triste e calado, sem falar uma palavra. Ele, que queria conquistar o mundo, viu tudo desabar. A pelada por um tempo cessou e ele apenas estudou sem de nada reclamar.
Mas seu sonho era maior do que tudo e assim como veio ao mundo num belo dia ele renasceu pra jogar. Novamente driblou, sorriu e se encantou. E com a bola nos pés voltou a marcar. Como o mundo não é perfeito, ali estava seu defeito. Acreditar apenas na sua vontade e não no que a vida lhe apontava como a mais pura verdade. Sonho novamente encerrado aos 13 anos de idade, quando o pai voltou pra Minas Gerais e o futebol ele não jogou mais.
Hoje aquele menino está aqui. Um carioca que não joga bola, não tem uma nega chamada Tereza, mas torce pro Flamengo, com certeza. Agora só me restam os sonhos de que eu poderia estar ai, brilhando. Ser um Ronaldinho Gaúcho, um Kaká ou um Fenômeno.
Mas sou apenas mais um na multidão. Troco os pés pelas mãos, escrevo letras que queriam ser bolas. Desilusões, lembranças, estórias e histórias. Dos contos de um Rio encantado que nunca saiu de mim. Contos que agora conto, com início, meio e fim.
Autor: Lange Pinheiro
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